segunda-feira, 18 de junho de 2007

A Cidade e as Serras

Os livros têm 2 maneiras de nos entrar pela alma dentro. A mais óbvia é quando os lemos pela primeira vez e somos arrebatados pela sua palpabilidade. A outra, menos óbvia, é quando os relemos, e nos apercebemos que, tal como tudo, somos seres dinâmicos. É um sinal da nossa grandiosidade, mas também da nossa caducidade.
Eu li “A Cidade e as Serras” de Eça de Queiroz algures pelos meus 15 anos. Agora, 10 anos depois, numa sôfrega redescoberta dos clássicos portugueses, calhou abrir novamente estas poucas páginas, e com elas, surpreendentemente, embarcar numa nova viagem, uma que não tinha feito antes da primeira vez que o li.
Vou aqui subscrever uma passagem. Contextualizando: Jacinto é um amante da civilização, da ciência, da cidade. Mas na sua vida não encontra a felicidade nem a paz de espírito, e é um aleijado de inquietude e tédio. Zé Fernandes é o seu melhor amigo e fiel seguidor, um homem rude das serranias do Douro, mas que também se rendeu ao ócio desta vida distinta da cidade e dos grandes luxos. Um dia sobem os 2 aos altos do Montmartre, um local onde uma enorme Basílica vigia silenciosa e complacente a eterna Paris.

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Aí estava pois a Cidade, augusta criação da Humanidade! Ei-la aí, belo Jacinto! Sobre a crosta cinzenta da Terra – uma camada de caliça, apenas mais cinzenta! No entanto ainda momentos antes a deixáramos prodigiosamente viva, cheia de um povo forte, com todos os seus poderosos órgãos, funcionando, abarrotada de riqueza, resplandecente de sapiência, na triunfal plenitude do seu orgulho, como Rainha do Mundo coroada de Graça. E agora eu e o belo Jacinto trepávamos a uma colina, espreitávamos, escutávamos – e de toda a estridente e radiante Civilização da Cidade não percebíamos nem um rumor nem um lampejo. [...] Para este esvaecimento pois da obra humana, mal ela se contempla de cem metros de altura, arqueja o obreiro humano em tão angustioso esforço? [...]
Certamente, meu Príncipe, uma ilusão! E a mais amarga, porque o Homem pensa ter na Cidade a base de toda a sua grandeza e só nela tem a fonte de toda a sua miséria. Vê Jacinto! Na Cidade perdeu ele a força e beleza harmoniosa do corpo, e se tornou esse ser ressequido e escanifrado ou obeso e afogado em unto, de ossos moles como trapos, de nervos trémulos como arames, com cangalhas, com chinós, com dentaduras de chumbo, sem sangue, sem febra, sem viço, torto, corcunda – esse ser em que Deus, espantado, mal pode reconhecer o seu esbelto e rijo e nobre Adão! Na Cidade findou a sua liberdade moral: cada manhã ela lhe impõe uma necessidade, e cada necessidade o arremessa para uma dependência: pobre e subalterno, a sua vida é um constante solicitar, adular, vergar, rastejar, aturar: rico e superior como um Jacinto, a Sociedade logo o enrede em tradições, preceitos, etiquetas, cerimónias, praxes, ritos, serviços mais disciplinares que os de um cárcere ou de um quartel... A sua tranquilidade (bem tão alto que Deus com ela recompensa os santos) onde está, meu Jacinto? Sumida para sempre, nessa batalha desesperada pelo pão, ou pela fama, ou pelo poder, ou pelo gozo, ou pela fugidia rodela de ouro! Alegria como a haverá na Cidade para esses milhões de seres que tumultuam na arquejante ocupação de desejar - e que, nunca fartando o
desejo, incessantemente padecem de desilusão, desesperança ou derrota? Os sentimentos mais genuinamente humanos logo na Cidade se desumanizam! Vê, meu Jacinto! São como luzes que o áspero vento do viver social não deixa arder com a serenidade e limpidez; e aqui abala e faz tremer; e alem brutamente apaga; e adiante obriga a flamejar com desnaturada violência. As amizades nunca passam de alianças que o interesse, na hora inquieta da defesa ou na hora sôfrega do assalto, ata apressadamente com um cordel apressado, e que estalam ao menor embate da rivalidade ou do orgulho. E o Amor, na Cidade, meu gentil Jacinto? Considera esses vastos armazéns com espelhos, onde a nobre carne de Eva se vende, tarifada ao arrátel, como a de vaca! [...] Mas o que a Cidade mais deteriora no Homem é a Inteligência, porque ou lha arregimenta dentro da banalidade ou lha empurra para a extravagância. Nesta densa e pairante camada de Ideias e Fórmulas que constitui a atmosfera mental das Cidades, o homem que a respira, nela envolto, só pensa todos os pensamentos já pensados, só exprime todas as expressões já exprimidas – ou então, para se destacar da pardacenta e chata rotina e trepar o frágil andaime da gloríola, inventa num gemente esforço, inchando o crânio, uma novidade disforme que espante e que detenha a multidão como um mostrengo numa feira. Todos, intelectualmente, são carneiros, trilhando o mesmo trilho, balando o mesmo balido, com o focinho pendido para a poeira onde pisam, em fila, as pegadas pisadas; - e alguns são macacos, saltando no topo de mastros vistosos, com esgares e cabriolas. Assim, meu Jacinto, na Cidade, nesta criação tão antinatural onde o solo é de pau e feltro e alcatrão, e o carvão tapa o céu, e a gente vive acamada nos prédios como o paninho nas lojas, e a claridade vem pelos canos, e as mentiras se murmuram através de arames – o Homem aparece como uma criatura anti-humana, sem beleza, sem força, sem liberdade, sem riso, sem sentimento, e trazendo em si um espírito que é passivo como um escravo ou impudente como um histrião... E aqui tem o belo Jacinto o que é a bela Cidade!
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E a invectiva continua. Não transcrevo mais, que sei a que público se destina. Se ainda não se deu, dar-se-ía que o turbilhão de chamarizes que ubiquamente nos cercam a existência vos roubaria a atenção e mais não leriam.

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